Cheiro de mofo
PAPÉIS ENVELHECIDOS e empoeirados em estantes cinzas
histórias inacabadas de pessoas-números.
cheiro de mofo.
é muita umidade! disseram.
a mulher com venda guarda o portal
finge não ver
sua balança é desigual
sua espada cai sobre o mais fraco
seu martelo é o ponto final da ilusão dos justos.
o cheiro de mofo continua.
exala de capas imperiais
de decisões circulares
de vaidades egocêntricas
de seres [que se creem] excelências-doutores-deuses.
o cheiro de mofo insiste.
sai pelo ouvido
nariz
boca
vem do cérebro.
os limpadores-de-mofo declaram:
agora não tem mais lodo, nem mau-cheiro
não há mais papel
nem estantes
nem gavetas
nem armários
nem ácaros
nem fungos.
bem-vindas as máquinas
os chips
as nuvens
os dados invisíveis
inodoros
insípidos.
o cheiro de mofo persiste.
a nova forma reluzente, automatizada, pós-moderna, hodierna
de organizar-gerenciar as histórias de pessoas-números
não esconde o cheiro de mofo
que agora se mistura ao cheiro de esgoto.
Cyntia Silva
Poema vencedor do concurso de poesias do Sintrajusc em 2021
e publicado em Texturas 07, julho de 2022.