Cheiro de mofo

Esqueci a máscara. Ilustração de Jason Lima e Silva. Caneta nanquim, 2020.

PAPÉIS ENVELHECIDOS e empoeirados em estantes cinzas
histórias inacabadas de pessoas-números.

cheiro de mofo.
é muita umidade! disseram.

a mulher com venda guarda o portal

finge não ver

sua balança é desigual
sua espada cai sobre o mais fraco
seu martelo é o ponto final da ilusão dos justos.

o cheiro de mofo continua.
exala de capas imperiais

de decisões circulares

de vaidades egocêntricas

de seres [que se creem] excelências-doutores-deuses.

o cheiro de mofo insiste.
sai pelo ouvido
nariz
boca

vem do cérebro.

os limpadores-de-mofo declaram:
agora não tem mais lodo, nem mau-cheiro
não há mais papel
nem estantes
nem gavetas
nem armários
nem ácaros
nem fungos.

bem-vindas as máquinas
os chips
as nuvens
os dados invisíveis
inodoros
insípidos.

o cheiro de mofo persiste.

a nova forma reluzente, automatizada, pós-moderna, hodierna

de organizar-gerenciar as histórias de pessoas-números

não esconde o cheiro de mofo

que agora se mistura ao cheiro de esgoto.

Cyntia Silva

Poema vencedor do concurso de poesias do Sintrajusc em 2021
e publicado em Texturas 07, julho de 2022.

Anterior
Anterior

[pós]-Moderna-idade

Próximo
Próximo

Enredar