Vermelho revelador.
Fez a Primeira Comunhão aos onze anos para experimentar aquela massinha fina e branca que os católicos comem na hora da missa. A escolha foi de Júlia; sua mãe era espírita, mas não se opôs.
A igreja do bairro, pouco iluminada, cheirava a madeira queimada e úmida quando provou a hóstia:
- Isto tem gosto de macarrão cru.
Pensou, enquanto voltava com os olhos baixos a seu assento imitando os demais. No alto-falante Ave Maria de Bach e Gounod. Não se sentia no céu.
Depois daquele dia, passou a frequentar cada vez menos a igreja. Mas, todas as noites, continuava repetindo as orações que decorara no catecismo, sempre a se desculpar por algum ato que considerava pecado. Deus via seus pensamentos.
Os peitos começavam a aparecer; doíam. Bunda e coxas engordavam. Entre o umbigo e o coração, um vulcão prestes a explodir.
– Logo, logo vira mocinha, orgulhava-se a mãe.
– Quero tanto continuar criança, meu Deus… - Orava diariamente.
Quarenta graus e ela catava conchinhas na praia de Copacabana. Férias escolares e o encontro anual com o pai. O sol descia. A maresia exalava sal e peixe podre. Pequenas ondas batiam em suas pernas e molhavam o short. Novamente aquela sensação de que uma erupção aconteceria dentro dela a qualquer momento.
Em casa, percebeu uma pequena borra escura em sua calcinha branca. Uma sensação estranha.
– Deve ser a mancha da roupa úmida - tentava se convencer.
Não contou a ninguém sobre o ocorrido; nem sabia o que fazer. Qualquer solução passaria por um adulto e a menina não confiava em nenhum deles.
Tomou banho, trocou de roupa; mas outra mancha se formava. Lembrou que sua mãe sempre usava aquela coisa fofa na calcinha. A única ideia que lhe ocorrera foi colocar algodão por dentro da roupa para que não vazasse, e ninguém percebesse a sujeira.
– O que farei amanhã quando formos ao parque de diversões?
O vulcão intensificava a pressão. Vestiu uma bermuda preta para não evidenciar nenhuma mancha.
Dia interminável: roda gigante, montanha-russa, chapéu mexicano, tobogã, festival de sorvete, carrinho bate-bate. O barulho de pessoas e brinquedos misturava-se às músicas no parque. Não conseguia se divertir e fingia estar bem.
Cada vez que ia ao banheiro, sentia um fluxo vermelho vivo jorrando e se acumulando naquele pequeno punhado de algodão. Era oficial: estava no inferno. Não via a hora de se livrar de toda aquela sujeira entre as pernas.
Ao chegar em casa, o banho foi sua redenção. Ao contrário do dia anterior, não se lembrou de jogar fora a roupa suja.
Sua madrasta entrou no banheiro depois dela e entendeu tudo. Deu-lhe absorventes e as instruções de como proceder dali pra frente.
Júlia morria de vergonha. Ao se deitar naquela noite, uma angústia dava lugar ao vulcão. Ao contrário da oração de sempre, tentava entender o que acontecia.
– Deus, por que me castigou? Eu pedi tanto para continuar criança… Sempre fui boa menina, mas você me colocou neste inferno.
A criança, a inocência e deus morriam naquele dia. Mas a culpa cristã e aquele vulcão sempre prestes a entrar em erupção, entre o umbigo e o coração, a acompanhariam por toda a vida.
*Conto de Cyntia Silva, publicado em Texturas 01 (2019).