Finitude
“A vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta”
(Manuel Bandeira - Momento num Café)
A impactante imagem da cova coletiva aberta no estado do Amazonas para enterrar mortos pelo novo Coronavírus viralizou. Ela sintetiza nossa fragilidade social diante da devastação que a doença tem provocado em nosso tempo. Os efeitos da COVID19 logo foram comparados aos da Gripe Espanhola do início do século passado. A Peste, romance-crônica de Albert Camus, foi desenterrado de fundos de estantes e, magicamente, parece ter sido escrito agora, não fosse pelo “detalhe” de nele não figurarem as relações humanas mediadas por dispositivos eletrônicos nesses novos tempos de quarentena. De resto, angústias coletivas, diante do efeito mortal de invisíveis microorganismos no todo poderoso ser humano, são as mesmas. Em Orã, cidade do litoral argelino, Camus afirma logo de cara: “uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre”. E quanto a isso descobre a dificuldade que se tem de morrer naquele lugar.
Vida e morte são as grandes questões da humanidade. Elas pulsam em nós desde quando nos entendemos como seres racionais e culturais, diferenciado-nos de um amontoado de átomos, células e microorganismos. Mas o fato é que a ideia de nossa finitude me bateu com força nos últimos tempos. Não sei se foi o fato de eu já ter percorrido meio século que me trouxe a ideia de perecimento; ou se foi a lenta morte por velhice de nosso cão Zumbi que povoou minha mente com reticências. Senti necessidade de organizar meus pensamentos sobre a questão.
Morte é de gênero feminino, aponta a tradição da língua portuguesa. Entre os vários sentidos registrados no dicionário, “o fim ou a cessação da vida (animal ou vegetal)” 1 é o que melhor cabe aqui. Diversos sinônimos são registrados por Houaiss 2 e destaco os que me dizem algo:
1 falecimento: acabamento, desaparecimento, desaparição, passamento, perda, perecimento, trânsito, traspasse, traspassamento.
2 fim: acabamento, aniquilamento, destruição, fenecimento, ocaso, término, termo.
3 sofrimento: angústia, desgosto, dor, pesar, tormento.
Quando criança, nunca experimentei a perda de alguém próximo; nem por tragédia, doença ou causas naturais. A morte sempre parecia algo distante. Tinha medo dos mortos e da morte pelas histórias de assombração da cultura popular, perpetuadas no cinema. Achava que, se dormisse sem cobrir os pés, uma assombração viria me pegar à noite. Só entrei em cemitérios já adulta para me solidarizar a amigos pela morte de seus pais.
Eu tinha mais de 40 anos quando comecei a perder avós e tios já idosos. Nunca enfrentei a dor de uma perda precoce. Posso dizer que a morte entrou suave na minha vida e não tive medo de assombrações. Acredito no corpo e na matéria, mas respeito as explicações religiosas sobre o que acontece quando chegamos ao fim. Até porque elas são mais fáceis e confortam muitas pessoas. Poucos suportariam viver assumindo que ignoramos muita coisa, que temos mais perguntas do que respostas. Mas para mim, o espírito é físico. A matéria da mente, da psiquê, da história, dos eventos que compõem cada personalidade, e como ela se manifesta, é concreta. Mas de um concreto subjetivo. Logo, a vida que cada um tem ou teve prossegue, não no além, mas na trajetória construída, nos rastros da sua existência ressignificada por outras pessoas. Seja essa vida boa ou má. E nisso a morte tem um significado outonal.
Outono é a estação da morte que precede o renascimento. Do casulo que precede o voo. Da volta na espiral do tempo. Tempo em que a vida nunca volta ao que era. Retorna-se a um início. Mas a um novo início do qual não se sabe o ponto final. A única certeza é a de que há um final, nem que seja no meio do caminho. O antônimo de morte é vida: “Nascimento, começo, início, origem, vida. Aparecimento, criação, desenvolvimento, surgimento. Alegria, deleite, felicidade, prazer, satisfação”.
Não tenho mais medo da minha morte como tinha quando criança. Mas gostaria que demorasse a chegar para prolongar meu convívio com entes queridos. Continuo a fazer planos e a engajar-me em projetos coletivos para fazer daqui um lugar melhor. Mas não acredito em falsas promessas de dias bons lá no futuro. Minha velhice ainda me parece estar num lugar distante - assim como eu pensava aos 18 anos. Essa ilusão diária me energiza para prosseguir a trajetória junto aos mais de 7 bilhões de humanos deste Planeta.
Em mim, o outono se anuncia: carnes, peles e dentes preparam-se para se desgrudar do esqueleto que restará. No final, meu corpo jogado à terra será devorado por vermes - deusas-mães - que gerarão e alimentarão novas vidas.
Cyntia Silva
Crônica publicada em Texturas 3, julho de 2020.
(1) “morte”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 20082020, https://dicionario.priberam.org/morte [consultado em 26-05-2020].
(2) Dicionário Houaiss: sinônimos e antônimos/ [Instituto Antônio Houaiss; diretor de projeto Mauro Salles Villar]. - 2 ed. - São Paulo: Publifolha, 2008.
A Morte Absoluta *
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne.
[...]
Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer seu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, a lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento, em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”
Morrer mais completamente ainda,
Sem deixar sequer esse nome.
* Morte Absoluta, de Manuel Bandeira, atravessou meu caminho durante a Quarentena. A morte foi tema que perseguiu de perto esse tuberculoso poeta recifense. Viveu, espantosamente, por 82 anos. Manuel Bandeira